quinta-feira, 25 de abril de 2013

KAYA (Clauder Arcanjo)


Cerradura - Tamorlan


Falaram-me, tempos depois, que o seu nome de batismo era José João da Silva. Apesar de ninguém nunca tê-lo chamado por tal nome.

Vagava, havia anos, pelas ruas da província, como um zumbi. De cor negra, metia-se por debaixo das sombras das tamarineiras da Avenida São João, quando do sol mais abrasador; comia o resto das sobras das casas, catando, como um bicho, as sacolas de lixo. Disputando, às vezes com desvantagem, com porcos e cachorros.

Curioso, dei para acompanhá-lo de longe. “Não dê cabimento a doido, rapaz!”

Causava-me curiosidade o seu jeito. Apesar dos sinais evidentes de abandono, trazia nos olhos uma espécie de mansidão. Jamais fora flagrado com qualquer ato de violência, ou de mínima fúria. Se alguém lhe interrompia os passos, quer fosse gente ou bicho, mudava o rumo, e sumia.

Em época de festividades — Natal, Carnaval ou novenas da padroeira —, desaparecia. Enfiava-se na direção do Serrote da Rola, e só voltava de lá tempos depois.

O interessante é que não fedia como os outros mendigos e loucos da rua. A roupa desbotada e surrada estava quase sempre limpa. Fim de tarde, constatei, mergulhava nas águas da Pedra da Luzia, a lavar-se com os nacos de sabão abandonados pelas lavadeiras do rio.

Tomei coragem e, certo dia, aproximei-me. Era quase noite. Quando me viu chegar, saiu da água, a vestir suas vestes, ainda ensaboadas, às pressas.

— Não, não vá! Amigo.

Baixou o rosto, e voltou-se para mim, lentamente.

— Tudo bem. Não vá. Amigo.

De repente, um silêncio entre nós. Notei que, em seu olhar, havia um quê de dor. Deixei que o tempo nos aproximasse. Como havia, onde me encontrava, um pedaço considerável de sabão de pedra, apanhei-o e fiz menção de lhe dar.

De início, recuou. Assustado, olhando sempre ao redor, com receio de surpresa.

— Amigo. Amigo.

Sentei junto a ele, e apontei para o rio, como a lhe dizer: lave-se, termine de se lavar. E assim o fez, entrando nas águas sem tirar os olhos de mim.

Notei que era meticuloso no seu banho. Com modos até de fidalguia. Com o passar dos minutos, relaxou e até deu umas braçadas na parte mais funda do Acaraú.

Saiu, deixando as vestes penduradas na cerca vizinha. Contudo, não ficara de todo nu, portava uma ceroula.

Hora depois, constatando que tudo já estava enxuto, vestiu-se e saiu.

Na tarde seguinte, lá voltei. Notei-o agora mais relaxado. “Amigo, amigo!”

E assim tudo se repetiu, por mais de uma semana. Certa tarde, tirei também a minha roupa e caí na água. Desajeitado, e sem saber nadar muito bem, vi-me carregado pelo remanso da Pedra da Luzia, a engolir água e a bater os braços, quase em desespero. Senti, então, uns braços rijos a me conduzirem para a parte mais rasa; quando tomei pé, recobrei a cor.

— Obrigado, amigo!

Um quê de riso estava estampado em sua face. Rimos juntos, caudalosamente.

Na saída, voltei-me e peguei na sua mão direita, num gesto rápido, sem dar tempo de ele fugir do meu aperto de mão.

— Amigo.

De certa forma, ficamos amigos. Nosso encontro, ao final da tarde, na discrição da Pedra da Luzia, fez-nos próximos. Não havia palavra, como se a presença de cada um por si só nos bastasse.

Nos festejos da Independência, o pároco, diretor do ginásio municipal, resolvera prestar uma homenagem aos “bravos navegadores de além-mar”. Montou uma caravela na cabeceira do rio, uma surpresa para todos.

Na manhã do feriado nacional, os alunos perfilaram-se próximo à Igreja Matriz, todos voltados para o rio. Quando a nau assomou, frente à Pedra da Luzia, com suas velas infladas pelo vento, ouvimos uma voz em supremo desespero:

— Kaya! Kaya!...

Era o meu amigo, a correr em direção à caravela da Independência.

Subiu na embarcação, e quis pilotá-la rumo ao continente africano, a vituperar aos quatro ventos:

— Kaya! Kaya!...

Foi recolhido ao manicômio.

Ao visitá-lo, na ficha, junto ao leito, o novo “nome”: Kaya.



* Leia também PRETENSÃO
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Antonio Clauder Arcanjo (Clauder Arcanjo), nascido em Santana do Acaraú-CE, aos 3 de março de 1963, é engenheiro, professor, contista, poeta, cronista, resenhista literário e colaborador de sites, revistas e jornais de várias partes do País. A reunião de contos, intitulada Licânia, marcou a sua estreia em 2007. Lápis nas veias(minicontos) foi a segunda obra, lançada em 2009. Novenário de espinhos é o seu primeiro livro de poemas. O autor tem obras inéditas nos gêneros: crônica (Uma garça no asfalto), romance e resenhas literárias.

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