sábado, 13 de abril de 2013

“AS PALAVRAS SÃO PROPÓSITOS”* (Dércio Braúna)

Uma Paciência Selvagem - Adrienne Rich


Não tenho estatísticas, gráficos e mais ordenamento de números para comprovar, por isso afirmarei com um sentimento – arriscando-me, bem sei, a todas as consequências dessa afirmação não calcada na mais estrita razão comprobatória: muita da poesia que hoje (e já a certo tempo) nos rodeia abdicou de se erigir contra o seu tempo; aqueles que ainda o fazem parecem ser dignos senão de um pacífico silêncio por parte daqueles que (ainda) tomam a poesia em consideração, em apreciação. A poesia do tempo presente (uma sua boa parte, mais prudentemente dizendo) parece voltar costas, tapar ouvidos, fechar boca ao que está além de si, ao que habita à sua porta. E antes de mais dizer, que se atente a que aqui não se coloca uma cabal generalização: disse “muita da” e não “toda a” poesia que hoje nos rodeia. Que claro fique este ponto de partida.

É certo (não posso fechar os olhos a isso) que esse sentimento, quiçá, diz muito mais da sensibilidade de quem o afirma do que do “campo” do fazer poético do tempo presente; é certo que a cada um a sua conta poética, o seu gosto pelo que cabe ou não cabe à poesia dizer. E há de certo ser, ainda, que em cada tempo houve, há e há de haver poesia e poesia, concepções e concepções sobre o seu afazer: poesia insurreta, contemplativa, metafísica, hermética, enfim...

Mas, como disse, trata-se de um sentimento, e é disso que falo: eis a minha prova; eis (é certo) a minha nudez ante os argumentos que contra esse sentir se ordenem.

Mas é um outro sentimento (a contraface do antes referido) o que move essas linhas: o da surpresa de um encontro, da candente e violenta descoberta de uma voz, de uma poesia que se ergue contra o tempo que habita, que, ereta, lúcida, nos diz:

Poeta [...]: as palavras –quer queiramos, quer não –existem num tempo que lhes é próprio. [p. 189];

por tal, e “em nome da poesia”, “preciso [precisamos, os que escrevemos] de saber estas coisas” [p. 191].

Assim escreveu uma mulher em parte boa e em parte corajosa, que lutou com aquilo que em parte compreendeu. [p. 45]

Assim escreveu Adrienne Rich. Uma poeta que não aceitou o mundo como lhe era dado, que ante um “tempo macho” [p. 45] soube fazer ouvir sua voz de mulher. Não uma mulher conformada ao desenho que lhe quiseram dar, mas uma mulher “incisiva” em seu viver:

ousarei habitar o mundo movendo-me incisiva como uma enguia [...] [p. 61]

Para Adrienne, “nós somos as nossas palavras”, daí a ética consequência de que, “o mundo, temos de o fazer” [p. 75], temos de questionar seu

[...] livro de mitos onde os nossos nomes não aparecem. [p. 103]

Para mim, não resta dúvida: é “violenta, arcana, comum, talhada da mais comum substância viva” a poesia de Adrienne, escrita que se constrói “ardendo de dentro do veio” [p. 111] do seu tempo. A mim, resta-me esse sentimento vertiginoso, essa ardente voragem de a descobrir, palavra a palavra, verso a verso, em sua lúcida e contundente feitura poética.

Não admira que duas suas tradutoras, contundentemente, nos advirtam: “Não se lê Rich impunemente.” [p. 26]. Teem razão estas senhoras.



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NOTA BIBLIOGRÁFICA

* Verso de Adrienne Rich.
ADRIENNE RICH, Uma paciência selvagem – antologia poética (edição bilingue). Trad. Maria Irene Ramalho e Monica Varese Andrade. Lisboa: Cotovia, 2008.
ADRIENNE RICH, poeta norte-americana, nascida em 1929 [Baltimore, Maryland], filha de pai judeu e mãe cristã. Casou-se jovem (mas seu esposo suicida-se em 1970), teve três filhos. Assumidamente lésbica, Rich é uma crítica dos valores dominantes da sociedade norte-americana, seja em relação a seus “valores morais” calcados nas identidades de gênero, seja em relação a seus pretensos “valores humanísticos”. Sua estréia literária dá-se em 1951 com a publicação do livro A change of world [Mudança de mundo].

OBRAS DE ADRIENNE RICH

A change of world [Mudança de mundo], 1951
The diamond cutters [Os lapidadores de diamante], 1955
Snapshots of a daughter –in-law [Instantâneos de uma nora], 1963
Necessities of life [Necessidades da vida], 1966
Leaflets [Folhetos], 1969
The will to change [A vontade de mudar], 1971
Diving into the wreck [Mergulhando no barco naufragado], 1973
The dream of a common language [O sonho de uma língua comum], 1978
A wild patience has taken me this far [Uma paciência selvagem trouxe-me até aqui], 1981
Sources [Fontes], 1983
Your native land, your life [Tua terra, tua vida], 1986
Time’s power [O poder do tempo], 1989
An atlas of the difficult world [Atlas do mundo difícil], 1991
Dark fields of the republic [Campos negros da república], 1995
Midnight salvage [Salvados da meia-noite], 1999
Fox [Raposa], 2001
The school among the ruins [A escola entre ruínas], 2004
Telephone ringing in the labyrinth [Telefone a tocar
[além de coletâneas]

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Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossosA selvagem língua do coração das coisasMetal sem húmusComo um cão que sonha a noite sóUma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.


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