domingo, 14 de junho de 2015

LIVRO DAS VIDAS [Excertos de obra inacabada do prof. Benjamin Umpibekele] [Dércio Braúna]


[Our freedom (detalhe), de Lisa Kokin]


Se a algumas vidas a morte chega com a serena mão estendida de algum anjo do senhor, a outros chega ela demasiado cedo, com a fúria de potros rasgando a terra perfumada de uma inascida manhã.

Assim foi a Benjamin Umpibekele. A morte lhe veio com a crueza do horror sem mais, com a brutalidade do inexplicável que decepa o sentido, que atordoa o pensar e o sentir. O homem do saber que dedicou uma vida (os anos dela até sua morte trágica) ao estudo do horror, como tanto já se disse, não escapou a ele.

Mas de sua vida e obra, hão de ainda vir aqueles que lhe darão a justa e merecida escrita. É certo já haver estudiosos debruçados sobre o ror de escritos (apontamentos, anotações, rascunhos, fichas de leitura, etc.) pelo professor Umpibekele deixados. Há já, inclusive, proposta de transformação de sua casa em uma fundação-museu, dedicada a continuar sua obra (enquanto preocupação não só acadêmica, mas humana) e difundi-la. Afinal, não seria justo deixar inacabada a obra (humana) daquele que acreditava, como escreveu certa vez, que “a história do mundo havia de ser outra se o deus do tempo desse a seus filhos o tempo de findar as suas obra. As histórias inacabadas do mundo ergueriam outra História.” [Benjamin Umpibekele]

E um dos que tem enfrentado essa faina, um dos primeiros a se debruçar sobre o espólio do professor Umpibekele, é o pesquisador e também professor universitário Norberto Fontes. Seu interesse tem recaído, principalmente, sobre o corpus de imagens (sobretudo gravuras e  fotografias) reunidas, enquanto viveu, pelo professor Umpibekele. Tem sido Norberto Fontes a divulgar alguns estudos (ainda preliminares) sobre a paixão de Benjamin Umpibekele pelas imagens. E mais que a paixão: a importância que essa paixão tomou na sua obra (ainda quando não diretamente nela figurando). Além dos estudos, Norberto Fontes tem ainda propiciado a todos os que se interessem pela vida e obra do professor Umpibekele o contato direto (ou virtual, melhor se dirá) com parte desse arquivo imagético.

Hoje, em memória aos cinco anos do assassinato do professor Umpibekele, divulgam-se aqui dois textos, duas “reflexões ético-imagéticas”, na expressão do professor Fontes, de seu espólio. O material reunido fazia parte do que poderia vir a ser (isto porque não se tem a certeza de que ganharia a forma de livro) mais uma obra do professor Umpibekele. Chamar-se-ia Livro das vidas. Pelas indicações deixadas, o possível livro ganharia forma a partir da interpretação de imagens do passado (principalmente, mas não só) e das reflexões que essas imagens (muitas delas de vidas ignoradas e esquecidas) poderiam suscitar ao tempo presente.

Na descrição que fez desse material, o professor Norberto Fontes escreveu:

“Trata-se de duas caixas de arquivo (de material plástico), ambas intituladas, em seu exterior, por uma etiqueta: “Livro das Vidas – recolhas”. Ao todo, o conteúdo das duas caixas somam perto de seiscentas folhas de papel. A maioria contém um título. 
O conteúdo de cada uma é diverso. Há folhas apenas com a impressão de imagens; noutras, as imagens foram recortadas de outros materiais e coladas; há também recortes de jornais e revistas (colados às folhas). Nalgumas, há longos textos reflexivos escritos pelo professor Umpibekele, em sua maioria à mão, havendo também boa quantidade de textos impressos, alguns datados e outros não. Noutra parte das folhas do “Livros das Vidas” há apenas apontamentos  (uns mais extensos, outros mais breves) do que viria a ser desenvolvido; outras há em que constam apenas nomes (de pessoas e locais) e datas; outras ainda em que constam não mais que uma palavra para caracterizar a imagem; há também uma série delas em que constam a transcrição de trechos de obras (ou sua indicação) que, certamente, seriam utilizadas pelo professor Umpibekele na construção de seus textos. São obras dos mais diversos ramos do saber, principalmente filosóficos, históricos e literários. 
Há muito ainda o que se debruçar sobre o todo fragmentário do espólio imagético do professor Umpibekele. O que se pode afirmar, com toda a segurança, é que o “Livro das Vidas” era uma paixão (humana, mais que acadêmica, me arrisco a asseverar) desse grande pensador.”

Com a violenta morte de seu autor, Livro das vidas ficou como as vidas sobre que pretendia se debruçar: inacabado, disperso pelo tempo. Ao que estudiosos, liderados pelo professor Norberto Fontes, buscam agora dar continuidade – ainda que sob o signo do fragmentário, como o é o do material reunido.

À memória do professor Benjamin Umpibekele, dois breves pedaços do seu Livro das vidas.

I. A SERENA INOCÊNCIA DO MAL




Quem são aqueles homens cruéis?

Sempre me pus a perguntar pelas vidas daqueles que, riso aos lábios, nos olham sem que em seus olhos lhes adivinhemos a mancha do mal. A eles, o mal acabara de ser extirpado, pela santa pureza das chamas que converteram seu “animal sacrificial” em restos de carne misturados a cinzas e pedaços de madeira. Olhar esses homens, a expressão de suas faces, é contemplar aquilo que certo pensador entende ser a “transição entre a possibilidade do mal humano e a sua realidade” [Mahommah G. Baquaqua, Mar branco: os caminhos do mal, p. 19].

Em papel e tinta, fruto das reações químicas operadas na luz um dia capturada por uma fotografia, o tempo nos transmitiu a realidade do mal.

E em sua testa não há a mancha que um dedo divino (a fim de avisar aos bons sua presença), um dia primevo, nos tempos de nascença do mundo, pôs na testa daquele que tocou. Não se vê nos rostos que sorriem a expiatória e negra mancha do mal. Suas faces límpidas e alvas, seus vestires compostos e distintos, não correspondem à figura do mal que mais comumente constroem os discursos a seu respeito.

Imaginei sempre o que fizeram esses homens, retornados a suas casas depois de seus atos. Que terão dito aos seus? (Bem pode ser que nada, que estes também partilhassem a “justeza” de sua “caça”.) Como terão olhado para seus filhos ao retornarem? Algum sentimento, mínimo, poderá lhes ter surgido diferente nessa noite? Como terá sido o sono de cada um? É provável que nada disto faça sentido de ser indagado. É provável que, sob o efeito de algum destilado, tomados no caminho de volta, tenham simplesmente dormido o “sono dos justos”. Manhã seguinte terão ido a suas labutas. Algum comentário, entre risos, hão de ter feito. Nunca, todavia, hão de ter pensado: somos mais uns na antiga (e pelos vistos eterna) rota dos homens perversos. Isto nunca. A “mancha” que marca o “impuro”, o marcado para a expiação, é sempre “uma representação e esta encontra-se mergulhada num medo específico que impede a reflexão: com a mancha entramos no reino do Terror” [Mahommah G. Baquaqua, Mar branco: os caminhos do mal, p. 41].

Um terror que compraz, que fascina.

Vejam o menino. Esse do lado direito, agarrado a um homem (seu pai?), mão direita ao queixo. Que dizer de seu prazer “inocente” ante os restos de sua “caça”? Para mim, trata-se da alegria mais intrínseca do mal: aquela que em ocasiões como essa, em que se captura o instantâneo da face da multidão, podemos ver com clareza.

O mal não sorri com a face deformada dos monstros, mas com a serena inocência das crianças. E isto é o que mais nos cabe pensar.

* * *

II. O QUE DEVERIA ESTAR AQUI NÃO ESTÁ

“Uma carência me empurra a escrever.” Mas isto que escrevo não se faz uma presença: “o que deveria estar aqui não está.” Está uma ausência: a sua. Escrevo para dizer de seu nome, do nome daquele que já não está. Não falo por ele, não posso estar “autorizado a falar em seu nome”, como se pudesse ser, alguma vez, “supostamente sabedor, em definitivo, o que ele é.” Não, não falo em seu nome. Falo por seu nome. Para que os de depois saibam que ele aqui esteve. É certo aqui estarmos e depois já não, é certo passarmos. O silêncio (a escuridão tremenda), todavia, é já outra dor.

Vejam esse rosto.





Este homem, na qualidade de propriedade, coisa de pertença, serviu a um senhor. Um senhor que disse, e sacramentou em escrita: “Eu jurei no altar de Deus hostilidade eterna contra toda forma de tirania sobre a mente do homem”. Será por isso que tanto fez uso (extremo) do corpo do homem, tratando-o tal qual uma besta?

Desse olhar não ficaram palavras, escrita, obra, monumentos a lembrar aos vivos a “justeza” e “retidão” dos mortos de antanho. De seu senhor, arauto da liberdade e da justiça, sim. Concreto, mármore, bronze fincam sua memória no relvado calmo de uma nação.

Desse homem, na qualidade de propriedade, coisa de pertença, ficou não mais que a palavra de seu senhor a dizer de seu corpo (suas medidas, seu valor, sua indolência), notícia de jornal em meio a coisas achadas e perdidas:

“e tem os signaes seguintes: estatura baixa, côr fula, pés um pouco apalhetados, tem um calombinho entre as sobrancelhas por cima do nariz, que parece ser signal da terra delle.” “é muito ladino e astucioso”.

Vejam, bem reparem esse rosto, esses olhos. Pensemos o que terá pensado, o que terá escrito sua dor silenciosa (e silenciada) na sua carne torturada, em sua memória esquecida.

Pensemos. Torturemos o pacífico silêncio dos senhores. Porque o que deveria estar aqui não está.

Pensemos, por isso.

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CRÉDITOS
[imagem 1]: “Southern disturbances”. In HARRIS, Middleton A. (Org.). The black book. Random House: New York, 2009, p. 58 (reprodução de matéria jornalística).
[imagem 2]: “Thomas Jefferson’s slave. In HARRIS, Middleton A. (Org.). The black book. Random House: New York, 2009, p. 12.

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NOTAS E REFERÊNCIAS
A SERENA INOCÊNCIA DO MAL: Na escrita desse texto, as citações atribuídas a Mahommah G. Baquaqua e sua obra Mar branco: os caminhos do mal, foram retiradas de A simbólica do mal, de Paul Ricoeur [Trad. Hugo Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Edições 70, 2013.] As páginas indicadas estão corretas. Quanto a Mahommah G. Baquaqua, esse foi um africano, escravizado e transportado para o Brasil, mas que também passou pelo Haiti, Canadá e Estados Unidos. Baquaqua teve sua biografia, Biography of Mahommah G. Baquaqua. A native of Zoogoo, in the interior of Africa, escrita por ele e compilada por Samuel Moore, publicada em Detroit (Estados Unidos) em 1854. Uma parte do relato de Baquaqua foi publicada em português em número da Revista Brasileira de História [Disponível em: <www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=3686>. Acesso em: 03 fev. 2012.]

O QUE DEVERIA ESTAR AQUI NÃO ESTÁ: Nesse texto, as citações do primeiro parágrafo foram usurpadas a Michel de Certeau, em La fabula mística (siglos XVI-XVII) [Trad. Laia Colell Aparicio. Madri: Ediciones Siruela, 2006 (p. 11-35)]. Já as notícias de jornal citadas (sobre fuga de escravos) estão em O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, de Gilberto Freyre [4 ed. rev. São Paulo: Global, 2010 (p. 86 e 90)]
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DÉRCIO BRAÚNA [1979], escrevente de coisas sentintes, é filho das terras cearenses de Limoeiro do Norte, cria de um pequeno lugar chamado Córrego de Areia, onde mãos amanham barro, cultivam o agridoce e espinhoso sumo para sustendo de suas necessidades, lavram a terra e a vida. Leitor tardio, é ainda faminto desse ato de fazer conversar pensamentos, imaginações. Apaixonou-se, já há tempo, por outras águas e terras, por outros olhares sobre o viver, por outras "imaginografias" (africanas, moçambicanas), sobre as quais tem andado a debruçar-se. Deu escritura a sentires e pensares:  [poesia] O pensador do jardim dos ossos (Expressão Gráfica, 2005), A selvagem língua do coração das coisas (Realce editora, 2006), Metal sem húmus (7Letras, 2008), A ARIDEZ LAVRADA PELA CARNE DISTO (Confraria do Vento, 2015); [contos] Como um cão que sonha a noite só (7Letras, 2010); [história] Uma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto, Nyumba-Kaya - Mia Couto e a delicada escrevência da Nação Moçambicana (Alameda Editorial, 2014)Consumido por sua paixão, segue remoendo na reflexão os fios que cruzam, os nós que emaranham a literatura e a história, sobretudo nos ditos tempos e espaços pós-coloniais. Segue também escrevinhando, espiando seu tempo, fabricando a ordinária e necessária vida que temos. Dos tantos dizeres que hão sido ditos, gosta de partilhar estes dois: 1) "A escrita não pode esquecer a infelicidade de onde vem a sua necessidade", este de um pensador francês (Michel de Certeau de seu nome); 2) "O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer", este duma camponesa portuguesa analfabeta (Josefa Caixinha de seu nome, avó de um senhor escrevente, de nome José Saramago). Quiçá estes gostos que tem ajudem a compreender porque entenda que escrever é desassosegar. Seu website é este [http://www.derciobrauna.com/] e seu perfil no Facebook é este [https://pt-br.facebook.com/kayarevistaliteraria].


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