domingo, 7 de abril de 2013

A CONTUNDÊNCIA SUMÁRIA DAS COISAS [Cântico a meu senhor e meu deus] (Dércio Braúna)


Vintage pocket watch - Jorge Royan




I.

Em sua silente combustão, o Tempo
                                           (penoso combustível
                                            que nos escasseia)

é este cheiro da tarde
que bebe do suor
do meu corpo
(máquina arcaica e inútil
ante seu deus incorpóreo).

Nada Lhe posso contra:
eu,
     que aqui parado me findo,
     que aqui sentado me extingo,
     sou senão de Vós o húmus,
     meu senhor e meu deus.


II.

Não sei dizer ao certo:
       se agora ou se antes,
       se hoje se antanho,
       se memória e mais nada,
       se medo ou certeza
       pisando-me os calcanhares;

ao certo não sei,
mas enquanto no chão dessa tarde já quase extinta,
varrido por esse ar,
se iam aqueles meninos
sobre seus grandiloquentes cavalos de talo,
enquanto, além, pacíficas, pastam crias;

enquanto nesse chão tudo isso existia
em sua ordinária existência
      (ninguém lavrará em cartório
       o milagre de sua consumação
       enquanto coisa do mundo);

enquanto tudo isso existia:

olhei teu rosto
e me doeu a premonição
de que um dia,
            um de nós,
consolará a memória que ficar
                                     do outro.


III.

E já tudo não existirá:
        nem rosto
        nem pele
        nem suor
        nem afago
        nem gesto
        nem nada;
já nada existirá
porque existir
                      é deixar.

Eis a contundência sumária das coisas:
existir-deixar
                            mais seu milagre
                            da memória dos gestos
                            enquanto isso.




* Leia também "ARGILA PROVISÓRIA"
___________
Dércio Braúna [editor de Kaya] - é poeta, contista, historiador; autor de O pensador do jardim dos ossosA selvagem língua do coração das coisasMetal sem húmusComo um cão que sonha a noite sóUma nação entre dois mundos: questões pós-coloniais moçambicanas na obra de Mia Couto.



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